sábado, 19 de abril de 2014

RESIDÊNCIA NO INSTITUTO HILDA HILST - DIÁRIO DE BORDO




Dia 8

“Há muitas portas, bate na certa, falo em nome de todos, ARRANCA sempre, a floresta é amiga quando se entra armado. CAMINHO, CAMNHO, os ossos à mostra. Haydum, um gozo não me tiras: NADANADA de mim quando me tomares, nem os ossos. Estou novamente no centro, as paliçadas ao redor, esta casa-parede avança, vai me comprimindo. Porco-Haydum: tentei”.
(Hilda Hilst, Último parágrafo do livro Ficções)

Hoje o dia amanheceu cedo para nós, na ânsia de não perder um minuto sequer deste último dia na Casa. Já havíamos encerrado os trabalhos no espaço, então passamos a manhã e um pouco da tarde trabalhando na edição de fotos e vídeos para uma mostra do material produzido que tínhamos vontade de fazer para Olga, Jurandy e os demais residentes que nos acompanharam nesta semana.
O material ficou pronto rapidamente, e nos dedicamos então à tarefa mais prazerosa de todas, saborear. As conversas na feitura do almoço, o passeio pela área verde, a companhia dos cães, o deitar na rede da tarde. Visitamos todos os cantos da Casa novamente, na inocente tentativa de gravar na memória as cores, os cheiros e os sons deste lugar.
No início da noite uma visita à Figueira, é engraçado como para nós é lá que mais pulsa a alma de Hilda, e sempre que nos aproximamos é difícil não imaginar que ela estava ali sentada nos observando de perto. Uma última visita para agradecer pela estadia e pelo trabalho, pela oportunidade de fazer nosso este espaço particular de criação.
Aproveitando este momento, agradecemos também de todo o coração a Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey, pelo convite amigo para esta experiência. Mais ainda à Jurandy Valença e Olga Bilenky por tantas coisas que é difícil nomear aqui, pela acolhida amiga, pelos compartilhamentos de memórias e referências, pelas refeições maravilhosas, e pelo tempo.
Na Figueira também fizemos pedidos, incentivados pelas experiências de Olga e Jurandy, mas o pedido maior que fazemos ao universo é que cada vez mais pessoas percebam o encantamento desta Casa impregnada pela alma e trabalho de Hilda. E que haja em seu futuro cada vez mais amor, falemos também das condições financeiras para que o trabalho destes dois artistas e entusiastas da vida e obra de Hilda possam seguir cuidando deste patrimônio, que é infinito e imaterial.
Seguimos para a terra do sol, mas parte de nosso coração fica aqui, na Casa dele.

Casa do Sol, 19 de Abril de 2014.

RESIDÊNCIA NO INSTITUTO HILDA HILST - DIÁRIO DE BORDO




Dia 7


Mas como a memória, por mais gosto que tivesse em reproduzi-las, não conseguisse pôr em nenhuma dessas pequenas gravuras aquilo que eu há muito havia perdido, o sentimento que nos faz não considerar uma coisa como um espetáculo, mas a julgá-la um ser sem equivalente
(Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – Vol. 1: No Caminho de Swann)
           

Um dia para colocar no lugar aquilo que restava por fazer, para olhar aquilo que já havia sido feito. Neste penúltimo dia editamos o vídeo de Derrelição, que realizamos com base na obra A Obscena Senhora D. de Hilda Hilst. Movimentos de solidão, espera e apagamento circundam a casa sem teto e porta, apenas com janela, como uma moldura sem pontes de tela ao centro que a interligue, apenas um vazio si-mesmo que se expande e se contém, até não ser mais.
            Encerramos leituras e catalogamos a produção que realizamos entre três séries de fotografias, com aproximadamente mil fotografias feitas, vinte e sete deuses pesquisados e (per)formados, e três vídeos captados, ocupa agora uma fatia generosa de espaço virtual na memória de nossas máquinas de trabalho.
            E que espaço esses materiais ocupam em nossos corpos? As intensidades não são da ordem da massa e do peso, são da ordem da experiência sensível, de um entre que é tão somente passagem e memória incorporada, e cujas medidas são sempre inequivocamente incertas e os encaminhamentos imprevisíveis. Todavia, para falar menos da reflexão e mais do que agora fica no corpo, uma sensação de ação realizada, de encontro com linhas de força preciosas, e de um espaço (a Casa do Sol) incalculavelmente preenchido com possibilidades de criação e beleza.

            No final da tarde realizamos ainda a documentação em foto e vídeo de mais uma ação, Siluetas para Ana Mendieta, e mais uma vez passeamos entre os sons das cigarras, corujas, cães e folhas secas, inventando outros corpos, outras vias de passagem por estes nossos corpos, outros movimentos contra o tempo que se esgota.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

RESIDÊNCIA NO INSTITUTO HILDA HILST - DIÁRIO DE BORDO



Dia 6

“E eu poderia dizer que sou meu corpo?
Se eu fosse meu corpo ele me doeria assim?
Se eu fosse meu corpo ele estaria velho assim?
O que é a linguagem do meu corpo? O que é a minha linuagem?

(Hilda Hilst, Agda)

Hoje conheci Denise Coimbra, escritora, psicóloga e nova residente da Casa apaixonada por pessoas e suas histórias, e através do deslumbramento dela percebi o quão ricas são as histórias que ouço e repito desde pequena sobre meus pais e a luta de seu início de vida, da minha família. Uma conversa no café da manhã que, sem dúvida, acendeu ainda mais a luz desse dia lindo que começa.
Depois de tratar das questões práticas de diários de bordo e de divulgações do curso que daremos na volta para casa, me volto para o texto “A Obscena Senhora D”, sobre o qual idealizamos um vídeo que foi filmado hoje próximo aos canis numa casinha abandonada, ou derrelida, sem teto ou porta.
Partimos do que Hilda chama no texto de Derrelição, nome que o marido de Hillé dá para ela e que permeia este texto/delírio de seu leito de morte tomado por diversas vozes que ecoam em sua própria voz. No texto, Hilda escreve: “Derrelição Ehud me dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu?”.
Essas pessoas serão trabalhadas no vídeo como molduras, quadros que permeiam a paisagem do texto, assim como fotografias antigas permeiam as paredes da sala de Hilda. Como sonorização, a repetição do trecho do poema de Hilda intitulado “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé – De Ariana para Dionísio I” musicado por Zeca Baleiro: “É bom que seja assim Dionísio, que não venhas”, que trata da preparação de Ariana para a vinda este Dionísio que não chega. Através deste trecho pensamos a espera de Hillé pelo seu próprio descanso indagando a Ehud como é o tempo no úmido do fosso onde ele se encontra morto.
Na escrita de Senhora D, Hillé é só perguntas, sabe-se sua idade e seus questionamentos, porém é impossível saber de sua aparência física. Algo que pode ser uma pista dessa aparência pode-se ver já no fim do texto, nas palavras do Porco-Menino, um dos nomes que Hilda dá ao Sagrado em outros textos, mas definido aqui como aquele que gosta de porcos e também de gente: “Um susto que adquiriu compreensão, isso era Hillé”. Deste “susto” podemos retomar momentos do texto em que Senhora D em sua obscena lucidez fazia aparições em sua janela que aterrorizavam os vizinhos, talvez por revelar outras partes do corpo ou talvez pela sua aparência, não se sabe.
Numa tentativa de síntese da ideia que pretendemos explorar no vídeo, o ponto central é a própria investigação da Derrelição e dos vazios (ocos) que se tenta preencher em movimentos. Desta vida que caminha para o fim acompanhado pelas vozes/delírios/memórias e, como coloca Hilda “meus cães, dos três pássaros, pedaços de frases

Incrível            sol                   morrendo
Noite               dor                  daqui a pouco
Luz                  palidez                        amanhã
Estranho         cães                sabem”


Diante dessas reflexões, e das lindas imagens captadas, trabalharemos na edição do vídeo, na ânsia de publicá-lo em breve. Expresso aqui um desejo de finalizar o vídeo como Hilda finaliza a obra:

Livrai-me, Senhor, dos abestados e dos atolumados.


Casa do Sol, 17 de bril de 2014.”